quarta-feira, 30 de abril de 2025

  Notas de viagem roubadas a um diário que não escrevi,

em partes, tantas quantas me promete a memória...


13 de Abril de 2025 -  Tashkent 

O nosso périplo por Tashkent continua a bom ritmo, sob a batuta de um guia que, com bonomia e cordialidade genuínas (e talvez por isso) logra manter quase 50 pessoas com um apreciável leque de idades e interesses, em estrita obediência a um programa de visitas muito preenchido, sem no entanto comprometer a liberdade individual, dentro dos constrangimentos que a rigidez dos horários impõe.

Dirigimo-nos à  Praça Mustakillik, a Praça da Independência, seguramente uma das maiores do país, local onde se erguem os edifícios governamentais.

No seu centro, o monumento à Independência e ao Humanismo. O contraste absoluto com o monumento que há pouco visitáramos. Uma mãe - a pátria - vestida a bronze, tal como a outra, mas agora segurando nos braços uma feliz criança, para a qual olha embevecida: a alegoria de um país que nasce, sob uma coluna que ostenta um globo com o mapa nacional em relevo.


Em frente, definindo a entrada para o caminho que leva à estátua, o grande arco "Ezgulik" com 150 metros de largo - o arco das boas e nobres aspirações - encimado por imagens de cegonhas, símbolo da prosperidade, já que lá, como cá, se afirma que a responsabilidade pelos incrementos demográficos repousa nos seus grandes bicos. 





É certo e sabido que os Romanov foram a última família imperial da Rússia. O Grão-Duque Nicolau Konstantinovich, filho do trisavô de Nicolau II, o derradeiro imperador, terá sido daqueles membros das famílias reais que, nos nossos tempos, encheria capas de revistas de mexerico social, graças à sua colorida e abundante vida amorosa. Conta-se que, acusado do roubo de joias da mãe para alimentar uma das suas plurais paixões, foi mandado arejar para Tashkent, longe dos olhares e dos ouvidos da corte. Lá, terá esbanjado a fortuna no jogo e numa vida sem privações, ficando-lhe de obra um palácio no centro da cidade, recheado com a sua coleção de obras de arte que, mais tarde, formariam a base do museu de belas artes de Tashkent, que nele funcionou até 1935, quando foi substituído na função por um edifício construído de raiz.

Hoje utilizado para receções a dignatários estrangeiros, o palácio Romanov ergue-se no outro lado da rua da praça da independência, à espera de melhores dias e de reabilitação, o que se espera venha a acontecer num futuro breve, já que o palácio que foi também a sede dos pioneiros Uzbeques nos tempos da União Soviética, bem o merece.





A tarde trouxe consigo a chuva que andava prometida desde meio da manhã. Em casa, antes de partir, viajante prevenido que sou, tinha consultado várias previsões de tempo para os dias de viagem. Todas me confirmavam sol, já algum calor pré-estival, mas de chuva, nem o cheiro. Convencido que fiquei, deixei o impermeável pendurado no armário, contente com o facto de poder aligeirar na roupa.... tinha agora a confirmação que previsões são isso mesmo... valia-me o boné, que sempre resguardava a minha desprotegida moleirinha dos grossos e frescos pingos que caiam com franca intensidade, para alegria das túlipas que enchiam de radiante cor alguns canteiros num dos parques por onde passámos.


Tamerlão, o Coxo (1336-1405), ou Timur-i-Lenk na grafia Turcomana, foi o último dos conquistadores mongois, tendo o seu vasto império ocupado um contínuo geográfico que ia desde o Mediterrâneo à India.

Reconhecido pela selvajaria e brutalidade das suas ações de conquista, ficou para a história também como um importante patrono das artes, a ele se devendo importantes edificações religiosas em particular em Samarcanda e Bukhara.

A sua estátua equestre ocupa agora o centro da principal praça da cidade de Tashkent onde antes da independência uma estátua de Karl Marx havia sido erguida, também ela substituindo uma anterior de Josef Estaline.

num dos lados da praça, um enorme edifício, no melhor do brutalismo soviético: o Hotel Uzbekistan, o mais luxuoso hotel do Uzbekistão da era soviética,  destinado a visitantes de delegações e grupos de turistas oficiais, com uns impressionantes 17 andares e 479 quartos, (hoje, esse número rondará os 300).



A chuva cai forte e não tenho tempo para muitas fotografias. Gostava de ter entrado no hotel, pelo menos espreitar o lobby, suspeito que a decoração original ainda se mantenha, lembro-me do hotel Internacional de Praga, onde estive há uns anos, outro ex-libris da hotelaria de inspiração soviética, parado no tempo... e nas alcatifas...

O programa do dia reservava-nos ainda uma passagem pela Mesquita Branca, um impressionante edifício todo em mármore branco, inaugurado em 2014, pelo presidente laico do país, na mais pura tradição da grande arquitetura religiosa Uzbeque... à nossa chegada, chega também um cortejo fúnebre. Para não perturbar os que rezam dentro da sala, não a visito e deixo-me ficar do lado de fora, com motivos de sobra para apontar a câmara uma e outra vez...










Última paragem do dia, avisa Dil, o nosso guia: a ópera nacional, O Grande Teatro Estatal Académico Alisher Navoi, construído entre 1942 e 1947, em grande parte por prisioneiros de guerra japoneses, leio mais tarde.

Continua a morrinhar e, nesta altura do ano, a larga praça em frente ao teatro exibe ainda um ar invernal, triste, quanto mais não seja por ter a grande fonte, fronteira à fachada, seca, com a bonita flor de algodão no seu centro, de onde deveria sair um vistoso repuxo, também resignada a uma espera por melhores dias, que em breve virão. 

Este é seguramente outro edifício que gostaria de explorar por dentro,  a julgar pelo belíssimo exterior que cristalizo em cinco ou seis imagens. 

O Elixir do Amor de Donizetti, e o bailado As mil e uma noites são as próximas realizações em cartaz...em Maio... pena...

Maravilho-me com o intrincado trabalho de filigrana nos painéis de mármore das colunas e da fachada clássica, estico o pescoço o mais que posso para trás, para me dar ao gosto de observar as curvaturas dos arcos e os tetos da entrada, de onde se suspendem bonitos candelabros de mármore, também.

Chove e sou já o último do grupo fora do autocarro, à espera que um pequeno grupo de pessoas saia da frente de uma das colunas do edifício... não tenho sorte nenhuma... em troca, um banco de jardim e um grosso tronco de plátano oferecem-me uma composição engraçada... tenho de ir...



 




Regressamos ao hotel. O programa de visitas do dia estava terminado. No dia seguinte partiríamos para Samarcanda; não podia deixar Tashkent, no entanto, sem uma passagem pelo famoso metro da cidade. A estação mais perto do hotel era também a mais famosa...45 minutos a pé, para esticar as pernas, por vezes à chuva, numa cidade que não prima pela qualidade da iluminação pública e eis-nos à porta das escadas para a estação Kosmonavtlar, a estação dos Cosmonautas.

Compramos os bilhetes, 1400 Som cada, 10 cêntimos de Euro... e descemos as escadas para a entrada e para os pórticos de metais e revista às mochilas.

No cais, algumas pessoas esperam o próximo metro, e, uma vez mais, membros da segurança, fardados. Uma senhora, envergando um tailleur azul e bivaque vermelho,  traz consigo também uma raqueta vermelha, que acredito seja para sinalizar ao condutor do metro o início da marcha.

Fotografo à vontade, embora sempre sob a curiosidade de um dos seguranças, com quem tento estabelecer  alguma conversa... não conseguimos muito, para além de um polegar levantado quando lhe mostro as fotos que acabo de tirar.

Não há muita gente no cais, mas é difícil ter  o campo de visão da objetiva deserto de pessoas. Observo os grandes medalhões na parede: Gagarine, como não podia deixar de ser, Valentina, também como seria de esperar... recordo a sua vinda a Lisboa nos anos 80 e também de a ver há tempos na televisão, numa das cerimónias presididas por Putin, que foi notícia a propósito  da inqualificável agressão Russa à vizinha Ucrânia.

O tempo passa depressa, esperam-me mais 45 minutos de volta ao hotel, está na hora de deixar o cosmos e regressar à terra. Despeço-me do meu  amigo polícia com um franco aperto de mão.... à falta de melhor, atira-me um "Cristiano Ronaldo"; eu, que nas coisas da bola sou mais deserto que o cosmos, bem gostaria de lhe responder com o nome de um qualquer jogador Uzbeque, mas fico-me por um sorriso amistoso, que estou certo, também marcou golo!

Amanhã, Samarcanda!


 







 




terça-feira, 29 de abril de 2025

 Notas de viagem roubadas a um diário que não escrevi,

em partes, tantas quantas me promete a memória...


13 de Abril de 2025 -  Tashkent - Praça da Memória e da Honra


As sociedades honram aqueles que por elas lutaram e as defenderam, por vezes em guerras inúteis, sem sentido, como muitas são ou, de um ponto de vista estritamente racional, todas são. 

Na verdade, não poucas vezes vivemos o desconcertante paradoxo de nos tentarmos aniquilar uns aos outros, para que possamos sobreviver...na forma que nos é culturalmente herdada, e que julgamos a mais justa, até que outra descubramos, num processo de amadurecimento evolutivo difícil, de constante tensão com outras sociedades ao nosso lado, ou que outra nos seja imposta e, com ela, a certeza de que cedo ou tarde, as sementes da resistência eclodirão...

Caminho difícil este, não raras vezes obtuso, contraditório, quase sempre rasgado a suor, lágrimas e sangue... muito...

Hoje, este sangue vive na pedra vermelha com que se talha a Praça da Memória e da Honra, um monumento erguido em 1999, honrando os soldados Uzbeques mortos naquela que por ali é conhecida como a Grande Guerra Patriótica, e para nós ficou como a Segunda Guerra Mundial.

A chama eterna ilumina o olhar de uma mãe que chora a não menos eterna perda... em ambos os lados da praça, pavilhões albergam as folhas de metal, organizadas por províncias, com os nomes dos mais de 400 000 soldados Uzbeques, que tombaram na guerra.

A solenidade do local no entanto é óbvia e é impossível não sentir o seu peso, no silêncio que aqui reina e acompanha a visita de pessoas que procuram, ainda hoje, nas grandes placas de metal, a inscrição que lembra um cada vez mais distante familiar, conhecido, vizinho... 

De súbito, uma gargalhada franca, insuspeita na sua inocência, corta o ar.... uma criança corre pelo relvado.... faz sol.... no peso condoído do bronze, a mãe olha a chama e chora...

Uma vez mais, as imagens das horríveis paradas do 10 de Junho no Terreiro do Paço vêm-me à memória....

No meu país não há folhas de metal com os nomes de todos os que tombaram, mas se houvesse, o meu nome não lá constaria.... falta uma semana para o 25 de Abril... e eu sinto uma enorme alegria.








 Notas de viagem roubadas a um diário que não escrevi,

em partes, tantas quantas me promete a memória...


13 de Abril de 2025 -  Tashkent - o mercado


Já o disse inúmeras vezes... até em textos deste meu blog que, também ele, parece um bazar,  tamanha a falta de unidade narrativa e de propósito que por ele serpenteia: tenho um enorme prazer em visitar mercados e feiras... 

Dirá quem leia e me não conheça que sou talvez candidato a qualquer coisa, conhecida que é a sanha dos candidatos a tempo inteiro por um ósculo bem molhadinho com sabor a escama ou por um abraço efusivo entre dois ramos de salsa e a frescura de uma penca. Não é assim. Candidato sou, mas apenas a tentar perceber um pouco mais quais os hábitos e consumos básicos de uma sociedade que não é a minha. E os bazares, os mercados, são compêndios insubstituíveis para um tal estudo. 

Já por aqui falei disso, mas tirando os mercados que de tal só têm o nome e mais parecem loja de centro comercial ou parque temático, em que a maior parte dos visitantes são não locais, um mercado genuíno é uma montra social insubstituível, como o são também, em grande medida os transportes colectivos.. ambos genuinamente recursos de massas, o que contrasta enormemente com os recursos que caracterizam as gentes de massas...

Por esta razão tinha grande curiosidade em visitar o mercado de Tashkent, o Bazar Chorzu.


O primeiro aspeto que nos intriga ao chegar a uma das entradas do mercado é o facto de se encontrar, em grande medida, albergado debaixo de uma enorme cúpula de 30 metros de altura e 80 metros de diâmetro, mas este é o maior mercado de Tashkent e esta é uma cidade de 3 milhões de habitantes, pelo que a dimensão deve ser também ponderada à luz desta variável. 

Lá dentro, as bancas correm concêntricas em várias filas, separadas por tipo de oferta. Carne, legumes, arroz, lacticínios e, pasme-se, Kimchi...

Leio mais tarde que existe uma significativa comunidade Coreana no Uzbequistão, descendente de expatriados à força... mais uma das boas ações desse escoteiro-mor que dava pelo nome de Josef Stalin....

Uma mezzanine corre toda a circunferência da cúpula, estando ocupada com os vendedores de frutos secos e especiarias.

Fora já da cúpula, outras secções, nomeadamente bancas de doces, onde provei sumalak, uma pasta doce com consistência de caramelo líquido, feita à base de malte de trigo e a área dedicada à panificação, bem como alguns pequenos restaurantes.

O ambiente é o de um qualquer mercado genuíno, com os vendedores a fazerem o seu melhor para promoverem o seus variados produtos, seja pela apresentação, seja pela oferta para prova, seja pela persuasão oral e os compradores pulando de banca em banca, na procura do melhor preço, sabendo de antemão que aqui é necessário ser-se um perito na verdadeira "Art of the Deal" (e não a que o trafulha que assenta por estas dias na Casa Branca, diz ter escrito).

Por certo haveria já um bazar no local onde, em 1980, foi erguido a actual cúpula em 1980. numa curiosa e feliz combinação de arquitetura modernista soviética com  o azul das muitas cúpulas que se vêm pelo Uzbequistão 



Os motivos geométricos que tão frequentes são na artes decorativas islâmicas, parecem também ter sido fonte de inspiração para o tratamento interior da grande cúpula.

A mim, que observava o bulício de um dia normal de mercado, todo o conjunto se me assemelhava a um daqueles grandes piões de lata que, quando pequenos, fazíamos rodopiar, carregando para cima e para baixo um êmbolo central. Não que com isto queira tecer qualquer consideração menos abonatória sobre a interessante edificação, mas a verdade é que a sensação de movimento que me provocou o aspeto circular de toda a construção, exacerbada pelas linhas concêntricas de bancas, irradiando do Grande pilar central, e que acho transparece das fotografias, é óbvia.


Como em qualquer bom bazar que se preze, a apresentação dos produtos nas bancas é irrepreensível, explodindo numa miríade de vistosos mosaicos, em particular nas bancas de frutos secos e especiarias, mais diversas em cores e tons.




Já as bancas de carne ainda que também elas arrumadinhas, terão, pela natureza do produtos e pela diversidade de origem dos mesmos um ar não tão  apelativo para visitantes de convicções mais assépticas, nada que pareça preocupar quem aqui se desloca à procura d um bom bife de cavalo ou de um pedaço de camelo para guisar..


 
Uma das vendedoras de Sumalak, com um enorme tacho do dito, acabado de preparar e que, generosamente, me deu a provar.


Navat - cristais de açucar elaborados a partir de sumo de uva, tradicionalmente utilizados para adoçar o chá.




Por dia, milhares de pães saem dos fornos. Quentinho, acabado de sair do formo, o pão era como todo o pão.... delicioso.


Apesar de grade parte do país ser ocupado por um extenso deserto, o meado de Tashkent estava repleto dos mais frescos vegetais... já vendê-los, com tanta oferta disponível, não deve ser tarefa fácil, a julgar pelo semblante preocupado do vendedor...