Notas de viagem roubadas a um diário que não escrevi,
em partes, tantas quantas me promete a memória...
13 de Abril de 2025 - Tashkent
O nosso périplo por Tashkent continua a bom ritmo, sob a batuta de um guia que, com bonomia e cordialidade genuínas (e talvez por isso) logra manter quase 50 pessoas com um apreciável leque de idades e interesses, em estrita obediência a um programa de visitas muito preenchido, sem no entanto comprometer a liberdade individual, dentro dos constrangimentos que a rigidez dos horários impõe.
Dirigimo-nos à Praça Mustakillik, a Praça da Independência, seguramente uma das maiores do país, local onde se erguem os edifícios governamentais.
No seu centro, o monumento à Independência e ao Humanismo. O contraste absoluto com o monumento que há pouco visitáramos. Uma mãe - a pátria - vestida a bronze, tal como a outra, mas agora segurando nos braços uma feliz criança, para a qual olha embevecida: a alegoria de um país que nasce, sob uma coluna que ostenta um globo com o mapa nacional em relevo.
Em frente, definindo a entrada para o caminho que leva à estátua, o grande arco "Ezgulik" com 150 metros de largo - o arco das boas e nobres aspirações - encimado por imagens de cegonhas, símbolo da prosperidade, já que lá, como cá, se afirma que a responsabilidade pelos incrementos demográficos repousa nos seus grandes bicos.
É certo e sabido que os Romanov foram a última família imperial da Rússia. O Grão-Duque Nicolau Konstantinovich, filho do trisavô de Nicolau II, o derradeiro imperador, terá sido daqueles membros das famílias reais que, nos nossos tempos, encheria capas de revistas de mexerico social, graças à sua colorida e abundante vida amorosa. Conta-se que, acusado do roubo de joias da mãe para alimentar uma das suas plurais paixões, foi mandado arejar para Tashkent, longe dos olhares e dos ouvidos da corte. Lá, terá esbanjado a fortuna no jogo e numa vida sem privações, ficando-lhe de obra um palácio no centro da cidade, recheado com a sua coleção de obras de arte que, mais tarde, formariam a base do museu de belas artes de Tashkent, que nele funcionou até 1935, quando foi substituído na função por um edifício construído de raiz.
Hoje utilizado para receções a dignatários estrangeiros, o palácio Romanov ergue-se no outro lado da rua da praça da independência, à espera de melhores dias e de reabilitação, o que se espera venha a acontecer num futuro breve, já que o palácio que foi também a sede dos pioneiros Uzbeques nos tempos da União Soviética, bem o merece.

A tarde trouxe consigo a chuva que andava prometida desde meio da manhã. Em casa, antes de partir, viajante prevenido que sou, tinha consultado várias previsões de tempo para os dias de viagem. Todas me confirmavam sol, já algum calor pré-estival, mas de chuva, nem o cheiro. Convencido que fiquei, deixei o impermeável pendurado no armário, contente com o facto de poder aligeirar na roupa.... tinha agora a confirmação que previsões são isso mesmo... valia-me o boné, que sempre resguardava a minha desprotegida moleirinha dos grossos e frescos pingos que caiam com franca intensidade, para alegria das túlipas que enchiam de radiante cor alguns canteiros num dos parques por onde passámos.
Tamerlão, o Coxo (1336-1405), ou Timur-i-Lenk na grafia Turcomana, foi o último dos conquistadores mongois, tendo o seu vasto império ocupado um contínuo geográfico que ia desde o Mediterrâneo à India.
Reconhecido pela selvajaria e brutalidade das suas ações de conquista, ficou para a história também como um importante patrono das artes, a ele se devendo importantes edificações religiosas em particular em Samarcanda e Bukhara.
A sua estátua equestre ocupa agora o centro da principal praça da cidade de Tashkent onde antes da independência uma estátua de Karl Marx havia sido erguida, também ela substituindo uma anterior de Josef Estaline.
num dos lados da praça, um enorme edifício, no melhor do brutalismo soviético: o Hotel Uzbekistan, o mais luxuoso hotel do Uzbekistão da era soviética, destinado a visitantes de delegações e grupos de turistas oficiais, com uns impressionantes 17 andares e 479 quartos, (hoje, esse número rondará os 300).
A chuva cai forte e não tenho tempo para muitas fotografias. Gostava de ter entrado no hotel, pelo menos espreitar o lobby, suspeito que a decoração original ainda se mantenha, lembro-me do hotel Internacional de Praga, onde estive há uns anos, outro ex-libris da hotelaria de inspiração soviética, parado no tempo... e nas alcatifas...
O programa do dia reservava-nos ainda uma passagem pela Mesquita Branca, um impressionante edifício todo em mármore branco, inaugurado em 2014, pelo presidente laico do país, na mais pura tradição da grande arquitetura religiosa Uzbeque... à nossa chegada, chega também um cortejo fúnebre. Para não perturbar os que rezam dentro da sala, não a visito e deixo-me ficar do lado de fora, com motivos de sobra para apontar a câmara uma e outra vez...
Última paragem do dia, avisa Dil, o nosso guia: a ópera nacional, O Grande Teatro Estatal Académico Alisher Navoi, construído entre 1942 e 1947, em grande parte por prisioneiros de guerra japoneses, leio mais tarde.
Continua a morrinhar e, nesta altura do ano, a larga praça em frente ao teatro exibe ainda um ar invernal, triste, quanto mais não seja por ter a grande fonte, fronteira à fachada, seca, com a bonita flor de algodão no seu centro, de onde deveria sair um vistoso repuxo, também resignada a uma espera por melhores dias, que em breve virão.
Este é seguramente outro edifício que gostaria de explorar por dentro, a julgar pelo belíssimo exterior que cristalizo em cinco ou seis imagens.
O Elixir do Amor de Donizetti, e o bailado As mil e uma noites são as próximas realizações em cartaz...em Maio... pena...
Maravilho-me com o intrincado trabalho de filigrana nos painéis de mármore das colunas e da fachada clássica, estico o pescoço o mais que posso para trás, para me dar ao gosto de observar as curvaturas dos arcos e os tetos da entrada, de onde se suspendem bonitos candelabros de mármore, também.
Chove e sou já o último do grupo fora do autocarro, à espera que um pequeno grupo de pessoas saia da frente de uma das colunas do edifício... não tenho sorte nenhuma... em troca, um banco de jardim e um grosso tronco de plátano oferecem-me uma composição engraçada... tenho de ir...
Regressamos ao hotel. O programa de visitas do dia estava terminado. No dia seguinte partiríamos para Samarcanda; não podia deixar Tashkent, no entanto, sem uma passagem pelo famoso metro da cidade. A estação mais perto do hotel era também a mais famosa...45 minutos a pé, para esticar as pernas, por vezes à chuva, numa cidade que não prima pela qualidade da iluminação pública e eis-nos à porta das escadas para a estação Kosmonavtlar, a estação dos Cosmonautas.
Compramos os bilhetes, 1400 Som cada, 10 cêntimos de Euro... e descemos as escadas para a entrada e para os pórticos de metais e revista às mochilas.
No cais, algumas pessoas esperam o próximo metro, e, uma vez mais, membros da segurança, fardados. Uma senhora, envergando um tailleur azul e bivaque vermelho, traz consigo também uma raqueta vermelha, que acredito seja para sinalizar ao condutor do metro o início da marcha.
Fotografo à vontade, embora sempre sob a curiosidade de um dos seguranças, com quem tento estabelecer alguma conversa... não conseguimos muito, para além de um polegar levantado quando lhe mostro as fotos que acabo de tirar.
Não há muita gente no cais, mas é difícil ter o campo de visão da objetiva deserto de pessoas. Observo os grandes medalhões na parede: Gagarine, como não podia deixar de ser, Valentina, também como seria de esperar... recordo a sua vinda a Lisboa nos anos 80 e também de a ver há tempos na televisão, numa das cerimónias presididas por Putin, que foi notícia a propósito da inqualificável agressão Russa à vizinha Ucrânia.
O tempo passa depressa, esperam-me mais 45 minutos de volta ao hotel, está na hora de deixar o cosmos e regressar à terra. Despeço-me do meu amigo polícia com um franco aperto de mão.... à falta de melhor, atira-me um "Cristiano Ronaldo"; eu, que nas coisas da bola sou mais deserto que o cosmos, bem gostaria de lhe responder com o nome de um qualquer jogador Uzbeque, mas fico-me por um sorriso amistoso, que estou certo, também marcou golo!
Amanhã, Samarcanda!
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