sexta-feira, 8 de agosto de 2025

  Notas de viagem roubadas a um diário que não escrevi,

em partes, tantas quantas me promete a memória...

27 de Julho de 2025 - Parte I -  Lituânia

 Klaipèda - Smiltyne - Parque Nacional do Istmo da Curlândia - Nida - Prevalka -  Juodkrante 



Na verdade não visitei Klaipèda....lamento. É uma cidade portuária e, por norma, cidades com água por perto, seja rio, seja mar, ou, melhor ainda, seja ambos como era o caso, costumam merecer passeio sem outra preocupação que a descoberta... o tempo, no entanto, é inflexível  e nós tínhamos os olhos postos um pouco mais à frente, no Istmo da Curlândia

Por isso metemo-nos no carro e fomos diretos para o novo cais, onde é possível apanhar uma curta ligação de ferry (não mais que 10 minutos) para Smiltyne, na verdade uma localidade ainda parte da municipalidade de Klaipèda, mas já situada na língua de areia e mata, longa de 98 km, repartida entre a Lituânia e a Rússia, que, pelas suas características naturais - alberga algumas das mais altas dunas errantes da Europa -  e qualidade da interação humana com as mesmas - são várias as povoações aqui instaladas - viu ser-lhe outorgado o estatuto de Património Mundial pela UNESCO.

Era cedo ainda e não havia qualquer fila para apanhar o barco. Depois de tirar o bilhete, esperámos um bom quarto de hora até que, por fim, o ferry lá atravessou as calmas águas da lagoa em menos tempo do que levo eu a escrever três parágrafos deste  relato....

No barco, apenas turistas, locais e alguns estrangeiros como nós, a julgar pelas diversas  línguas em que se teciam os comentários dos viajantes, à medida a que nos aproximávamos do cais de Smiltyne.


Uma longa reta de boa estrada esperava-nos do outro lado. Decidimos que iríamos diretamente para Nida, a localidade no limite da parte Lituana do istmo, para depois, no regresso pararmos, sempre que se justificasse.

Poucos quilómetros ainda tínhamos percorrido dos cerca de 50 que nos esperavam quando deparámos com uma inesperada praça de portagem.

Estávamos a entrar no parque Nacional  do Istmo da Curlândia e, como tal, era preciso pagar a taxa de acesso que, para automóveis, no verão, tem o módico valor de 50€, explicou-nos o portageiro.

Compreendo a necessidade de controlar o tráfego automóvel num local como este, em particular no verão. Se assim não fosse, imagino que a estrada que até agora me tinha surpreendido pelo pouco trânsito se tornasse rapidamente intransitável. 

Em contrapartida, não posso deixar de pensar que mais uma vez é o dinheiro que faz a "seleção natural", ao contrário do que Darwin pensava, e isso irrita-me de sobremaneira... lembrei-me logo do nosso ferry para Troia e das praias até Melides e da desfaçatez dos endinheirados que tentam condicionar o acesso a um bem que, no meu país, é, felizmente, público.

Já ao pé de Nida, avançámos para a primeira paragem do dia: a duna de Parnidis, o seu relógio de sol e a vista sobre o Vale da Morte, assim se designa o vale de areia na base da duna onde supostamente teria existido uma prisão militar onde muitos prisioneiros franceses da guerra Franco-Prussiana do final do sec. XIX teriam sucumbido, o que estudos científicos desenvolvidos já depois da independência da Lituânia não permitiram confirmar.


O quadrante solar da duna de Parnidis

Os entrançados tradicionais de ramos e canas com que
 a areia é ustida e sustentada, para limitar o seu avanço.


Hipparchia semele - também as há de onde escrevo



Não obstante, um pequeno memorial - um banco de pedra ao lado de outra pedra com uma ave nela pousado - foi ali erguido em 2018 a expensas do Ministério da Defesa francês.

Francês é também outro visitante de bronze. Sozinho, parece desafiar um vento que hoje, claramente, se não sente e até saberia bem, que o sol vai quente...

Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir estiveram na Lituânia, por cerca de 10 dias,  no verão de 1965. Nida foi um dos locais visitados pelo par que, segundo se conta, terá ficado fortemente impressionado pelas vastas dunas do istmo.

A visita seria imortalizada pela objetiva de um fotógrafo, então com apenas 26 anos, Antanas Sutkus, e uma fotografia em particular destacar-se-ia entre as muitas que registou nos dias em que acompanho os visitantes: Sartre e Beauvoir desafiando o vento sobre a areia. Sutkus editaria posteriormente esta fotografia, por forma a deixar Sartre sozinho no enquadramento, embora no chão continue a aparecer a sombra da companheira.


A foto editada seria recriada em bronze em 2018 por Klaudijus Pūdymas e instalada perto do memorial Francês.

A presença inesperada do existencialista é uma surpresa para o visitante... mas agora que sei que a foto original foi cortada, não posso deixar de sentir que falta alguém naquelas dunas...


Do miradouro instalado ao pé do enorme relógio solar, pode-se olhar para a parte russa do istmo que liga com o enclave de Kaliningrado e que pouco mais dista dali que um quilómetro facilmente transponível a pé, pela areia (o que provavelmente, não será boa ideia tentar....)

A estrutura branca que se vislumbra sob a linha do horizonte do lado direito da foto é uma torre de vigilância já do lado Russo do Istmo.

A calma que até agora nos tinha servido de companheira, foi de repente quebrada pela chegada de vários contingentes de turistas em viagens organizadas. Tempo de partir.

Chegados de novo ao parque de estacionamento fomos surpreendidos por dois enormes autocarros que bloqueavam os carros estacionados. Sem espaço para manobrar, obrigaram-nos a esperar uns bons 20 minutos até que finalmente conseguimos dali sair, com o azimute já tirado para visitar Nida.

As casas vermelho sanguíneo e azuis que tínhamos visto em fotografias e vídeos apareciam agora em profusão. O que não aparecia era sítio para estacionar e, depois de duas voltas ao centro da cidade, decidimos continuar para outra localidade mais recatada, porque ali seria difícil parar. 




No entanto, mais à frente, um inesperado lugar na beira da estrada surgiu de repente e nós aproveitámos a oportunidade para uma volta rápida pela zona em que nos encontrávamos que embora afastada do centro, se organizava no mesmo tipo de construção e gestão de espaços por que tínhamos passado mais atrás.

  




Era notório que estávamos a pisar território de elite. Bastava olhar para o parque automóvel e para a forma comos os bem cuidados jardins se articulavam entre as casas, também elas primorosamente cuidadas.

Ao longo da lagoa, uma via partilhada por bicicletas e peões prometia um bom passeio que não poderíamos no entanto fazer mas que outros, sem os nossos constrangimentos, aproveitavam a sós, em família ou na companhia de amigos.

Voltámos ao carro. Mais à frente ficaria a casa, reconstruída após danos sofridos por bombardeamento durante a segunda guerra mundial,  onde Thomas Mann passou três verões e a que nunca mais voltaria depois do seu exílio forçado, primeiro na Suiça, em 1933, e depois nos Estados Unidos da América, a partir de 1939, para fugir à perseguição do regime nacional-socialista que se instalara na Alemanha.



A casa de Thomas Mann

Uma vez mais o tempo limitado impedia a visita ao museu que a construção alberga, mas não deixei de visitar por fora a casa, instalada numa colina com uma vista belíssima para a lagoa.

O farol de Nida, cujo topo avistara da duna de Parnidis, seria a visita seguinte no programa, mas a estrada por onde o gps me mandava seguir estava cortada por uma casa em construção, e ir a pé tomar-nos-ia um tempo de que não dispúnhamos... triste por não poder prosseguir, consolei-me com a certeza que a seguir iria dar um mergulho no Báltico.

O farol de Nida... talvez um dia, quem sabe....

Os carros parados em espinha na borda da estrada indicavam as entradas para as praias. Tivemos sorte, uma vez mais: um carro vinha a sair numa delas o que nos permitiu estacionar, coisa que voltava a ser sumamente difícil.... a par dos automóveis dos fabricantes habituais por essa Europa fora,  alguns exemplares de marcas mais exclusivas - Bentley, Porsche, Ferrari, até um Rolls... acotovelavam-se nos estreitos espaços dos parques de estacionamento, o que compaginava em absoluto com o ambiente geral de riviera, que senti em Niva.

Um infindável areal, de areia fina e branca, até onde olhar alcançava;  água nos vinte graus, ondas pequenas e água pelos joelhos durante umas boas dezenas de metros... assim era aqui e seria em muitas outras praias que visitámos ao longo da nossa curta viagem. Mais ainda, no pico do verão, como estávamos agora, algumas delas estavam desertas e mesmo as mais frequentadas tinham espaço suficiente para qualquer pessoa se sentir dona da sua pequena praia pessoal....

As praias dispõem também dos necessários apoios que tornam a sua utilização prática e cómoda -  local para mudar de roupa, duche, lava-pés.... tal e qual como na Caparica, onde , que eu me tivesse dado conta, existe um duche para todos os 3 km da frente de praia do paredão... 

Prevalka foi a paragem que se seguiu após a saída da praia. A pequena localidade, como todas as outras no istmo, mostrava orgulhosa as suas belíssimas casas de madeira. Uma curta caminhada por um trilho na mata resguardado pela sombra doce dos pinheiros e pela frescura das groselhas, que por aqui crescem em profusão, levou-nos até a um ponto mais elevado de onde se podia avistar a ilha artificial construída na lagoa, sobre a qual se ergue um pequeno farol.



Os corvos marinhos de faces brancas (Phalacrocorax carbo) são, por estas bandas, muito frequentes e protegidos por lei. Perto da localidade de Juodkrantė, existe uma das maiores colónias europeia da espécie, que conta com cerca de 2000 indivíduos.


A sua proliferação tem, no entanto, um impacte notório sobre a floresta. Na zona de nidificação da colónia de corvos marinhos,   os pinheiros estão, em grande número, secos, erguendo-se sem copas, o que confere ao local uma estranha aura de floresta moribunda, devastada... As fezes ácidas dos corvos que cobrem árvores e chão são a razão desta verdadeira mortandade vegetal.

Juodkrantė é também conhecida por ser o local onde se ergue o "Monte das Bruxas", um museu a céu aberto de esculturas tradicionais de madeira que, desde 1979, ano em que as primeiras 25 esculturas ali foram implantadas em comemoração do ano internacional da criança, tem vindo a ser ampliado e mantido, contando agora com cerca de 80 peças. 



Ladeando um curto e agradável trilho à sombra de altas árvores,  reis, cavaleiros, fadas, duendes e outras criaturas míticas do rico folclore Lituano espreitavam as nossas passadas, tantas vezes interrompidas para mais um oh!, um ah? um uh? e o inevitável clic do obturador da máquina fotográfica.  



  



Uma das primeiras esculturas com que nos cruzámos era a de um banco suportado nas extremidades por dois duendes... eu já conhecia a cara de um deles.... o primeiro postal que recebi da Lituânia através do postcrossing, em 2021, estava ilustrado com uma fotografia do duende que tinha agora à minha frente... quem diria...?

O postal e a fotografia...

A manhã ia já passada e muito caminho nos aguardava ainda pela frente. De novo no carro, dirigimo-nos de volta a Smyltine e à curta espera para a travessia de ferry, tornada ainda mais fácil pela doçura de um pêssego e o conforto de uma sandes bem recheada, que nos serviu de almoço.

Klaipèda de novo.... Na verdade, não a visitei.... lamento.


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