sábado, 8 de junho de 2024


I - Porto - Labruge

09/Setembro/2023 




A verdade é que tinha posto o despertador para as 5h30, mas era preocupação escusada, porque a ansiedade da partida garantia que  um "cuco" interno me despertaria ainda antes do disparar do alarme no telemóvel.

Primeira preocupação: o tempo. Chovera de noite, constatei com uma rápida olhadela pela janela, mas não chovia agora. "Bom sinal", pensei, enquanto me preparava para abandonar o quarto onde passara a noite, reconfortado com um  café bem quentinho, oferta da máquina de nespresso que havia no quarto, em cima do pequeno almoço de yogurte e croissant comprado na vépera.

Queria apanhar o primeiro metro, para chegar à Sé o mais depressa possível e assim foi.

Àquela hora, ninguém estava no largo fronteiro à velha catedral. Uma ou duas fotografias e pronto, meti-me a caminho; tinha começado a aventura. Sentia a mochila bem assestada as costas, as pernas caminhavam sem esforço, o caminho de início era a descer e depois plano, por isso sentia que esta seria uma etapa boa para verificar como iria responder o corpo à conjunção de peso e distância.

Na dobra de uma escada, um homem de meia idade atarefava-se já a preparar um cachimbo de crack para acalmar os demónios dentro do corpo... tomado pelo inesperado, desejei-lhe bom dia, mas vi no olhar que lhe era indiferente o que eu lhe dissesse.. e o dia, seguramente não lhe seria bom... nem este, nem os de antes, nem os próximos...

Com a pressa, esquecera-me de pôr o telemóvel a gravar o percurso... 500 metros de descida e escadaria, pelo menos não terão ficado gravados, mas, no computo geral, eram irrisórios. pelo que me restava apenas ficar satisfeito por ter dado pelo erro a tempo. 

Num ápice cheguei à Ribeira. Agora era seguir o rio até à foz, de costas para a luz rósea de um dia que começava a despontar sobre as ruelas e calçadas que o Rui Veloso tantas vezes cantou.

Logo a ponte da Arrábida  e depois a Foz; a calma da bonita pérgula e uma moça jovem que passeava o cão e que comigo se cruzou a lançar-me com um sorriso rasgado e fraterno o que iria ouvir e desejar inúmeras vezes nos dias que aí vinham: "Força aí, Bom Caminho!". Confesso que não pude evitar sentir os olhos mais húmidos do que a humidade do dia por si só justificaria....

O dia avançava também ele húmido. seguramente muito perto da saturação do ar, o que  sentia na roupa molhada por dentro e por fora, e eu avançava também: Matosinhos e o imponente farol de Leça ficavam já para trás, o caminho fazia-se agora sobre passadiço, o monumento da Praia da Memória fez-me lembrar que já por aqui tinha passado há muitos anos, num fim de semana de participação em exposição de modelismo.

Uma brisa, soprando de sul, felizmente, empurrava-me e aliviava  o calor de um sol que agora que descobrira, mordia quente a pele. 

Uma banca de fruta à beira da estrada em Angeiras, deu-me a oportunidade de comprar por 30 cêntimos a mais deliciosa maçã que comi nos últimos anos . 

Cheguei a Labruge bem antes do meio dia. O último quilómetro desde o cruzamento à beira praia até ao albergue refletia já a quebra de ânimo por me saber perto da chegada, e foi o mais custoso do dia.

O albergue só abriria às 2 da tarde, por isso procurei um sítio onde almoçar e, depois de me recompor com uma sobejamente má "bifana no prato" e duas sobejamente frescas cerveja sem álcool, segui para o albergue onde havia já  uma dezena de pessoas aguardando a abertura.

Enquanto aguardava também, revi o dia, satisfeito pela minha condição no final dos mais de 25 quilómetros da tirada. Em particular os pés não tinham qualquer queixa que pudesse resultar em bolha, o meu principal medo.

Aberto o albergue, dei início aquela que seria a minha rotina ao longo dos 13 dias de caminho: banho; lavagem de roupa; descanso e, assaz importante, uma  ida até aos correios para enviar "a carta do dia": um envelope onde fui reunindo os carimbos que também ia colecionando na credencial que teria que apresentar em Santiago.

Sendo sábado, Correios estavam fechados, por isso meti o meu envelope na caixa de correio do posto instalado na Junta de Freguesia, mesmo ao lado do Albergue.

Tinha ainda algumas horas de dia, procurei abastecer-me para o jantar e pequeno almoço do dia seguinte, o que consegui fazer num pequeno supermercado ali perto e, até à hora de jantar, dediquei-me a preencher o meu caderno de viagem, que ilustrei com uma imagem do posto do Instituto de Socorros a Náufragos na Foz, por onde tinha passado de manhã.

A noite caiu rápido e com ela a noite também, na camarata, já que várias pessoas se deitaram logo que escureceu. Como também me queria levantar cedo,  fui para a cama, embora não tivesse sono....não sei bem quando, mas o que é certo é que ele me encontrou....

______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Uma mirada para o horizonte  fez-me sentir como se todo o Porto, aos pés da vigilante verticalidade dos Clérigos quisesse assistir a minha partida....

A diversidade arquitetónica da cidade é um dos seus maiores atrativos, acho.

E do velho se faz novo?

Quando caminho, procuro não me esquecer de, de quando em vez,  de olhar para trás, e é esta a razão por que o faço....

A ponte da Arrábida pintada de laranja pelo sol


Não sei bem porquê, mas, regra geral, os edifícios do Instituto de Socorros a Náufragos têm um je ne sais quoi que me me faz deles incondicional apreciador.

Tão diferentes as imagens que se vêm por vezes do Farolim de Felgueiras, em dias de tempestade, com a ondas a passarem-lhe por cima....

Decente é a cidade que relembra os seus melhores....

...e oferece a todos os outros o respaldo da beleza.


 A calma do mar e o terminal de cruzeiros de Leixões são antítese da... 


..."Tragédia do mar". Numa noite, em 1947, 152 pescadores pereceram no naufrágio de quatro traineiras, entre a Aguda e Leixões, deixando 71 viúvas e mais de 100 órfãos....



O Farol de Leça tudo viu...

e a Capela da Boa Nova também....



A desativada refinaria de Leça ....a contraluz dá-lhe uma aura de cena de ficção científica

já o obelisco da Memória parece incandescente no brilho da recordação do desembarque do irmão liberal e dos mortos que o conflito entre liberais e absolutistas provocou


O Albergue de Labruge. é bem verdade que já tinha dormido numa sala de aula, mas nunca instalado num beliche....



Sem comentários:

Enviar um comentário