I - Porto - Labruge
09/Setembro/2023
A verdade é que tinha posto o despertador para as 5h30, mas era preocupação escusada, porque a ansiedade da partida garantia que um "cuco" interno me despertaria ainda antes do disparar do alarme no telemóvel.
Primeira preocupação: o tempo. Chovera de noite, constatei com uma rápida olhadela pela janela, mas não chovia agora. "Bom sinal", pensei, enquanto me preparava para abandonar o quarto onde passara a noite, reconfortado com um café bem quentinho, oferta da máquina de nespresso que havia no quarto, em cima do pequeno almoço de yogurte e croissant comprado na vépera.
Queria apanhar o primeiro metro, para chegar à Sé o mais depressa possível e assim foi.
Àquela hora, ninguém estava no largo fronteiro à velha catedral. Uma ou duas fotografias e pronto, meti-me a caminho; tinha começado a aventura. Sentia a mochila bem assestada as costas, as pernas caminhavam sem esforço, o caminho de início era a descer e depois plano, por isso sentia que esta seria uma etapa boa para verificar como iria responder o corpo à conjunção de peso e distância.
Na dobra de uma escada, um homem de meia idade atarefava-se já a preparar um cachimbo de crack para acalmar os demónios dentro do corpo... tomado pelo inesperado, desejei-lhe bom dia, mas vi no olhar que lhe era indiferente o que eu lhe dissesse.. e o dia, seguramente não lhe seria bom... nem este, nem os de antes, nem os próximos...
Com a pressa, esquecera-me de pôr o telemóvel a gravar o percurso... 500 metros de descida e escadaria, pelo menos não terão ficado gravados, mas, no computo geral, eram irrisórios. pelo que me restava apenas ficar satisfeito por ter dado pelo erro a tempo.
Num ápice cheguei à Ribeira. Agora era seguir o rio até à foz, de costas para a luz rósea de um dia que começava a despontar sobre as ruelas e calçadas que o Rui Veloso tantas vezes cantou.
Logo a ponte da Arrábida e depois a Foz; a calma da bonita pérgula e uma moça jovem que passeava o cão e que comigo se cruzou a lançar-me com um sorriso rasgado e fraterno o que iria ouvir e desejar inúmeras vezes nos dias que aí vinham: "Força aí, Bom Caminho!". Confesso que não pude evitar sentir os olhos mais húmidos do que a humidade do dia por si só justificaria....
O dia avançava também ele húmido. seguramente muito perto da saturação do ar, o que sentia na roupa molhada por dentro e por fora, e eu avançava também: Matosinhos e o imponente farol de Leça ficavam já para trás, o caminho fazia-se agora sobre passadiço, o monumento da Praia da Memória fez-me lembrar que já por aqui tinha passado há muitos anos, num fim de semana de participação em exposição de modelismo.
Uma brisa, soprando de sul, felizmente, empurrava-me e aliviava o calor de um sol que agora que descobrira, mordia quente a pele.
Uma banca de fruta à beira da estrada em Angeiras, deu-me a oportunidade de comprar por 30 cêntimos a mais deliciosa maçã que comi nos últimos anos .
Cheguei a Labruge bem antes do meio dia. O último quilómetro desde o cruzamento à beira praia até ao albergue refletia já a quebra de ânimo por me saber perto da chegada, e foi o mais custoso do dia.
O albergue só abriria às 2 da tarde, por isso procurei um sítio onde almoçar e, depois de me recompor com uma sobejamente má "bifana no prato" e duas sobejamente frescas cerveja sem álcool, segui para o albergue onde havia já uma dezena de pessoas aguardando a abertura.
Enquanto aguardava também, revi o dia, satisfeito pela minha condição no final dos mais de 25 quilómetros da tirada. Em particular os pés não tinham qualquer queixa que pudesse resultar em bolha, o meu principal medo.
Aberto o albergue, dei início aquela que seria a minha rotina ao longo dos 13 dias de caminho: banho; lavagem de roupa; descanso e, assaz importante, uma ida até aos correios para enviar "a carta do dia": um envelope onde fui reunindo os carimbos que também ia colecionando na credencial que teria que apresentar em Santiago.
Sendo sábado, Correios estavam fechados, por isso meti o meu envelope na caixa de correio do posto instalado na Junta de Freguesia, mesmo ao lado do Albergue.
Tinha ainda algumas horas de dia, procurei abastecer-me para o jantar e pequeno almoço do dia seguinte, o que consegui fazer num pequeno supermercado ali perto e, até à hora de jantar, dediquei-me a preencher o meu caderno de viagem, que ilustrei com uma imagem do posto do Instituto de Socorros a Náufragos na Foz, por onde tinha passado de manhã.
A noite caiu rápido e com ela a noite também, na camarata, já que várias pessoas se deitaram logo que escureceu. Como também me queria levantar cedo, fui para a cama, embora não tivesse sono....não sei bem quando, mas o que é certo é que ele me encontrou....
Uma mirada para o horizonte fez-me sentir como se todo o Porto, aos pés da vigilante verticalidade dos Clérigos quisesse assistir a minha partida.... |
A diversidade arquitetónica da cidade é um dos seus maiores atrativos, acho. |
E do velho se faz novo? |
Quando caminho, procuro não me esquecer de, de quando em vez, de olhar para trás, e é esta a razão por que o faço.... |
A ponte da Arrábida pintada de laranja pelo sol |
Não sei bem porquê, mas, regra geral, os edifícios do Instituto de Socorros a Náufragos têm um je ne sais quoi que me me faz deles incondicional apreciador. |
Tão diferentes as imagens que se vêm por vezes do Farolim de Felgueiras, em dias de tempestade, com a ondas a passarem-lhe por cima.... |
Decente é a cidade que relembra os seus melhores.... |
...e oferece a todos os outros o respaldo da beleza. |
A calma do mar e o terminal de cruzeiros de Leixões são antítese da... |
..."Tragédia do mar". Numa noite, em 1947, 152 pescadores pereceram no naufrágio de quatro traineiras, entre a Aguda e Leixões, deixando 71 viúvas e mais de 100 órfãos.... O Farol de Leça tudo viu... |
e a Capela da Boa Nova também.... |
A desativada refinaria de Leça ....a contraluz dá-lhe uma aura de cena de ficção científica |
já o obelisco da Memória parece incandescente no brilho da recordação do desembarque do irmão liberal e dos mortos que o conflito entre liberais e absolutistas provocou |
O Albergue de Labruge. é bem verdade que já tinha dormido numa sala de aula, mas nunca instalado num beliche.... |
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