sábado, 8 de junho de 2024

 



Nota prévia

08/Setembro/2024 

Quase um ano depois, decidi começar a publicar o relato da minha passagem pelos Caminhos de Santiago, no Caminho Português da Costa.

Há muito que o devia ter feito, mas procrastinei..., primeiro porque não tinha as fotografias organizadas, depois porque me faltavam (e faltam ainda) textos, depois porque o tempo passou, a seguir porque me esqueci, depois já não sei porquê...

Se não começo, nunca acabarei.. por isso....

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Prólogo - Lisboa - Porto

08/Setembro/2023


Na Sé do Porto não encontrei o marco inicial
para o Caminho da Costa, apenas o do Caminho
do interior...
Um dia atiro-me ao caminho!

Tantas vezes pensei nisso e disse-o para comigo. Tantas... Cada vez que via uma seta amarela ou o brilho de uma vieira polida pela passagem de sapatos na calçada de uma das várias cidades galegas que as têm nas ruas a indicar a direção a seguir, a vontade reacendia, o incómodo do desejo instalava-se de novo,  repelava-me a consciência, desconfortava-me... faltava-me, no entanto, o tempo, essa comodidade absolutamente preciosa que se ganha...com o tempo.

Agora tinha-o.

Tinha também uns anos a mais, bastantes, desde que o desejo se formara pela primeira vez, algures onde guardamos os planos e as vontades. Com eles, algumas contrariedades físicas, próprias de um processo que não controlamos e que nos é inevitável, já que todos nós nos desgastamos ao ritmo das estações que nos habituamos a ver passar.

Ao contrário de outros, a benção era-me pois necessária no início e não no fim da viagem. A única que me interessava: a da ciência, do meu cardiologista, já que nenhuma motivação religiosa me impelia, agnóstico que sou e que das religiões - e da que me foi dada por herança casuística de nascimento, por maioria de razão - tenho a recusa que a minha leitura do mundo me impõe.

"Posso Dr?"

"Pode!"

Fraco diálogo, mas na palavra que o encerrou, toda uma explosão pirotécnica de luzes, cores, sons, palmas e tudo o que habitualmente se vê quando o clube que, sem que se saiba porquê, nos é de peito, ganha o campeonato.

Tal como religião, não tenho clube (e muito menos compreendo a irracionalidade que rebola na relva chutada numa bola), mas não vejo outra analogia que me possa colocar mais perto da euforia que me acelerava o pulso quando saí da consulta.

Era desta! Iria por fim realizar um desejo com 30 ou 40 anos.... 

Iria?

Junto à certeza da partida carregava a dúvida da chegada. Conseguiria eu? Bolhas, fadiga, peso..., não seria este um pacote mais difícil de transportar que a mochila e as botas em que o levaria?

E pure... Sentia-me capaz. Tinha-me preparado com caminhada sobre caminhada, com carga ou sem ela, e nunca me tinha sentido exausto no final de  tiradas em que tinha já ultrapassado a vintena de marcos quilométricos... não o tinha feito, no entanto, de forma sistemática, continuada, durante um período de mais de uma semana, como iria agora fazer, mas estava confiante, e só havia mesmo uma maneira de descobrir a resposta à dúvida que, ainda assim, me inquietava.

No dia escolhido para o início da viagem, parti então de camioneta para o Porto, local onde iniciaria o meu caminho para Santiago de Compostela, de porta a porta das Catedrais de ambas as cidades, como manda o figurino.

Calor, em setembro, e previsão de chuva para o dia seguinte... boda molhada, boda abençoada, dizem, talvez se passasse o mesmo com as caminhadas, pensei...

Do Oriente a Campanhã, pela autoestrada... rápido q.b., conveniente e, acima de tudo, barato. Excelente opção os muitos expressos que fazem a ligação direta, apenas com uma paragem numa área de serviço para esticar as pernas e dar curso às naturais efluências que nos habitam.

Chegado ao Porto, tive a primeira validação empírica do que já lera e ouvira. Não iria, por certo, estar muito só no meu caminho. De facto, no terminal de Campanhã, o que não faltava eram pessoas com mochilas às costas: novos, velhos, europeus, asiáticos, africanos,  louros, morenos, carecas, cabeludos... uma verdadeira montra animada da espécie humana. Uns frescos, como eu, de ida, outros sorridentes, contentes, de volta.

A fila para as máquinas de bilhetes atestava também a dimensão turística que a grande cidade nortenha tem hoje em dia... as nações unidas de novo em fila, para adquirirem o singelo e muito cómodo Andante....

O Porto está em obras... há muitos anos, de resto, mas ainda bem que assim é, porque o metro é um meio fundamental de transporte, rápido, confortável e energeticamente eficiente, creio. Por entre desvios com tapumes ao pé da magnífica estação de São Bento, que aproveitei para revisitar, lá encontrei o meu caminho de subida até à Sé, onde queria ir comprar a necessária Credencial de Peregrino, a qual não só me daria acesso aos albergues como seria o registo de passagem que me possibilitaria, no fim, obter a Compostela.

Eu sei, eu sei... "Então és agnóstico, tens uma visão crítica da religião, mas queres a Compostela, que diz que visitaste a Catedral de Santiago impelido pela fé?"

Assim é. A fé é um conceito intrinsecamente lato, e ser agnóstico não me inibe de uma dimensão espiritual que, como com qualquer ser humano, me é inerente e irrevogável. Aliás, esta dimensão é a minha companheira e guia de caminhada. Procuro-a no balanço dos meus passos que, pelo caminho, me conduzem à reflexão, à contemplação. Não vejo aqui qualquer contradição. Sim, visitei Compostela por fé. Fé em tudo o que acredito e me move. Aceito a Compostela à luz desta visão, sendo que, na prática, hoje, o ilustre documento é, em grande medida, curioso titulo de consecução, ou não fosse o móbil da caminhada desligado de qualquer intuito religioso para cerca de 60% de quantos a completam.

Já no apartamento onde passaria a minha última noite sem companhia das treze noites seguintes, revi todo o conteúdo da minha mochila, não fosse ter esquecido algo e  descansei um par de horas antes de voltar à baixa do Porto, para um passeio turístico, sem o peso da minha fiel companheira  às costas.

Recebera uma mensagem recomendando que enviasse o código da porta a alguém, porque se o perdesse não me seria possível entrar no apartamento. Por mero descargo de consciência, (ora agora... tenho o código no telemóvel, como o iria perder?) enviei-o à minha mulher.

Saí para o hall e fechei a porta do apartamento, pronto para sair para a rua...Ai...o telemóvel...ficou lá dentro... e agora?, como entro? Não sei o código...

Abri a porta da rua e pus-me entre ela e a parede, que é como quem diz, entre a espada e a parede, porque estava a ver as coisas mal paradas... um transeunte, moço de uns 40 anos, vinha a passar,..

" Desculpe, por acaso tem um telefone?; Deixa-me fazer uma chamada?"

O rapaz olhou-me espantado com o pedido, mas simpaticamente prontificou-se a ajudar, depois de uma breve explicação dos factos.

"Mas olhe, seja rápido que eu só tenho oito minutos" (não sei para quê, mas por certo seria importante).

A medo, digitei o número da minha mulher... "e se ela não atende...".. um toque, dois toques, três toques... "Está?"

"Estou safo!"

Apontei mentalmente o código, agradeci ao generoso rapaz que já só teria uns três minutos, mas mesmo assim se não queixava, e abri, com um enorme alívio, a porta do quarto, para recuperar o telefone.

Saí para o Porto e a cidade deu-me a alegria de um calmo fim de tarde, sem chuva, despreocupado, que frui até acabar as últimas batatas fritas de um bacalhau à minhota, que fez de cereja em cima do bolo.

Do dia, restava a dúvida da chuva, para a manhã seguinte, e a luz da cabeceira, que, por fim, fechei.




As magníficas fachadas dos prédios da Rua Alexandre Braga, ao lado do mercado do Bolhão 



Tão colorido e cosmopolita  que está o mercado do Bolhão... ele é urchins; ele é barnacles...



Se não soubesse onde era, diria Londres, talvez.... a traça, o cinzento outonal


     

Palácio de Arte para as Artes - que bonito é o friso modernista do Rivoli...

A Rua do Bonjardim, com a Rua Sá da bandeira a espreitar, ao fundo...

A Brasileira, com o hotel por cima e um DJ à porta.... a dar música para a esplanada....nunca fui de passar muito tempo em cafés, mas para música nas esplanadas, a mim basta-me o tilintar inconfundível das chávenas de porcelana e das colheres a pousar nos pires ...

Policromia na Rua da Madeira

"A incursão dos Bárbaros na Península Ibérica", um dos deslumbrantes frisos polícromos que Jorge Colaço concebeu para a Estação de S. Bento. Hoje, são muitos os bárbaros como eu que trespassam  as portas da gare ferroviária para visitar a que é considerada uma das estações mais bonitas do mundo...

Pormenor de "O meu sangue é o vosso sangue", escultura de Rui Chafes, Museu da Misericórdia

Rua das Flores....não é só em S. Bento que os azulejos fendem de luz a sombra das ruas..


Lá de cima, a Sé espreitava... como que a recordar-me que chegava de passeio, porque no dia seguinte o Caminho esperava...

O céu teimava na ameaça, que  a cidade convertia em brilho...

... e cor.

Mas o pôr do sol dava o mote...: também eu devia tornar a casa e 

fechar, por fim, a porta ao dia!

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