08/Setembro/2024
08/Setembro/2023
Na Sé do Porto não encontrei o marco inicial para o Caminho da Costa, apenas o do Caminho do interior... |
Tantas vezes pensei nisso e disse-o para comigo. Tantas... Cada vez que via uma seta amarela ou o brilho de uma vieira polida pela passagem de sapatos na calçada de uma das várias cidades galegas que as têm nas ruas a indicar a direção a seguir, a vontade reacendia, o incómodo do desejo instalava-se de novo, repelava-me a consciência, desconfortava-me... faltava-me, no entanto, o tempo, essa comodidade absolutamente preciosa que se ganha...com o tempo.
Agora tinha-o.
Tinha também uns anos a mais, bastantes, desde que o desejo se formara pela primeira vez, algures onde guardamos os planos e as vontades. Com eles, algumas contrariedades físicas, próprias de um processo que não controlamos e que nos é inevitável, já que todos nós nos desgastamos ao ritmo das estações que nos habituamos a ver passar.
Ao contrário de outros, a benção era-me pois necessária no início e não no fim da viagem. A única que me interessava: a da ciência, do meu cardiologista, já que nenhuma motivação religiosa me impelia, agnóstico que sou e que das religiões - e da que me foi dada por herança casuística de nascimento, por maioria de razão - tenho a recusa que a minha leitura do mundo me impõe.
"Posso Dr?"
"Pode!"
Fraco diálogo, mas na palavra que o encerrou, toda uma explosão pirotécnica de luzes, cores, sons, palmas e tudo o que habitualmente se vê quando o clube que, sem que se saiba porquê, nos é de peito, ganha o campeonato.
Tal como religião, não tenho clube (e muito menos compreendo a irracionalidade que rebola na relva chutada numa bola), mas não vejo outra analogia que me possa colocar mais perto da euforia que me acelerava o pulso quando saí da consulta.
Era desta! Iria por fim realizar um desejo com 30 ou 40 anos....
Iria?
Junto à certeza da partida carregava a dúvida da chegada. Conseguiria eu? Bolhas, fadiga, peso..., não seria este um pacote mais difícil de transportar que a mochila e as botas em que o levaria?
E pure... Sentia-me capaz. Tinha-me preparado com caminhada sobre caminhada, com carga ou sem ela, e nunca me tinha sentido exausto no final de tiradas em que tinha já ultrapassado a vintena de marcos quilométricos... não o tinha feito, no entanto, de forma sistemática, continuada, durante um período de mais de uma semana, como iria agora fazer, mas estava confiante, e só havia mesmo uma maneira de descobrir a resposta à dúvida que, ainda assim, me inquietava.
No dia escolhido para o início da viagem, parti então de camioneta para o Porto, local onde iniciaria o meu caminho para Santiago de Compostela, de porta a porta das Catedrais de ambas as cidades, como manda o figurino.
Calor, em setembro, e previsão de chuva para o dia seguinte... boda molhada, boda abençoada, dizem, talvez se passasse o mesmo com as caminhadas, pensei...
Do Oriente a Campanhã, pela autoestrada... rápido q.b., conveniente e, acima de tudo, barato. Excelente opção os muitos expressos que fazem a ligação direta, apenas com uma paragem numa área de serviço para esticar as pernas e dar curso às naturais efluências que nos habitam.
Chegado ao Porto, tive a primeira validação empírica do que já lera e ouvira. Não iria, por certo, estar muito só no meu caminho. De facto, no terminal de Campanhã, o que não faltava eram pessoas com mochilas às costas: novos, velhos, europeus, asiáticos, africanos, louros, morenos, carecas, cabeludos... uma verdadeira montra animada da espécie humana. Uns frescos, como eu, de ida, outros sorridentes, contentes, de volta.
A fila para as máquinas de bilhetes atestava também a dimensão turística que a grande cidade nortenha tem hoje em dia... as nações unidas de novo em fila, para adquirirem o singelo e muito cómodo Andante....
O Porto está em obras... há muitos anos, de resto, mas ainda bem que assim é, porque o metro é um meio fundamental de transporte, rápido, confortável e energeticamente eficiente, creio. Por entre desvios com tapumes ao pé da magnífica estação de São Bento, que aproveitei para revisitar, lá encontrei o meu caminho de subida até à Sé, onde queria ir comprar a necessária Credencial de Peregrino, a qual não só me daria acesso aos albergues como seria o registo de passagem que me possibilitaria, no fim, obter a Compostela.
Eu sei, eu sei... "Então és agnóstico, tens uma visão crítica da religião, mas queres a Compostela, que diz que visitaste a Catedral de Santiago impelido pela fé?"
Assim é. A fé é um conceito intrinsecamente lato, e ser agnóstico não me inibe de uma dimensão espiritual que, como com qualquer ser humano, me é inerente e irrevogável. Aliás, esta dimensão é a minha companheira e guia de caminhada. Procuro-a no balanço dos meus passos que, pelo caminho, me conduzem à reflexão, à contemplação. Não vejo aqui qualquer contradição. Sim, visitei Compostela por fé. Fé em tudo o que acredito e me move. Aceito a Compostela à luz desta visão, sendo que, na prática, hoje, o ilustre documento é, em grande medida, curioso titulo de consecução, ou não fosse o móbil da caminhada desligado de qualquer intuito religioso para cerca de 60% de quantos a completam.
Já no apartamento onde passaria a minha última noite sem companhia das treze noites seguintes, revi todo o conteúdo da minha mochila, não fosse ter esquecido algo e descansei um par de horas antes de voltar à baixa do Porto, para um passeio turístico, sem o peso da minha fiel companheira às costas.
Recebera uma mensagem recomendando que enviasse o código da porta a alguém, porque se o perdesse não me seria possível entrar no apartamento. Por mero descargo de consciência, (ora agora... tenho o código no telemóvel, como o iria perder?) enviei-o à minha mulher.
Saí para o hall e fechei a porta do apartamento, pronto para sair para a rua...Ai...o telemóvel...ficou lá dentro... e agora?, como entro? Não sei o código...
Abri a porta da rua e pus-me entre ela e a parede, que é como quem diz, entre a espada e a parede, porque estava a ver as coisas mal paradas... um transeunte, moço de uns 40 anos, vinha a passar,..
" Desculpe, por acaso tem um telefone?; Deixa-me fazer uma chamada?"
O rapaz olhou-me espantado com o pedido, mas simpaticamente prontificou-se a ajudar, depois de uma breve explicação dos factos.
"Mas olhe, seja rápido que eu só tenho oito minutos" (não sei para quê, mas por certo seria importante).
A medo, digitei o número da minha mulher... "e se ela não atende...".. um toque, dois toques, três toques... "Está?"
"Estou safo!"
Apontei mentalmente o código, agradeci ao generoso rapaz que já só teria uns três minutos, mas mesmo assim se não queixava, e abri, com um enorme alívio, a porta do quarto, para recuperar o telefone.
Saí para o Porto e a cidade deu-me a alegria de um calmo fim de tarde, sem chuva, despreocupado, que frui até acabar as últimas batatas fritas de um bacalhau à minhota, que fez de cereja em cima do bolo.
Do dia, restava a dúvida da chuva, para a manhã seguinte, e a luz da cabeceira, que, por fim, fechei.
As magníficas fachadas dos prédios da Rua Alexandre Braga, ao lado do mercado do Bolhão |
Tão colorido e cosmopolita que está o mercado do Bolhão... ele é urchins; ele é barnacles... |
Se não soubesse onde era, diria Londres, talvez.... a traça, o cinzento outonal |
Policromia na Rua da Madeira |
Pormenor de "O meu sangue é o vosso sangue", escultura de Rui Chafes, Museu da Misericórdia |
Rua das Flores....não é só em S. Bento que os azulejos fendem de luz a sombra das ruas.. |
Lá de cima, a Sé espreitava... como que a recordar-me que chegava de passeio, porque no dia seguinte o Caminho esperava... |
O céu teimava na ameaça, que a cidade convertia em brilho... |
... e cor. |
Mas o pôr do sol dava o mote...: também eu devia tornar a casa e |
fechar, por fim, a porta ao dia! |
Sem comentários:
Enviar um comentário