Rota Vicentina
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Prólogo - Lagos, 19 de maio 2024
Comecei a viagem num domingo. Em Lagos não consegui comprar um selo para correio nacional, pelo que o postal de início de caminho não seguiu... fica agora, aqui :-)
Como resistir a um caminho que, na designação porque é conhecido, convoca memórias dormentes em todas as camadas dos meus sentidos, do tato - na mão que agarra firme a superfície dura e áspera de uma rocha, na busca de apoio para o corpo que a seu lado progride - ao olfato - no ar temperado a tomilho e maresia que inalo em rápida sucessão, que o esforço assim me o exige; da audição - no vaivém da água que marulha entre os calhaus, na praia, no sopé da falésia - à visão - desafogada, até onde o mundo se deixa ver, em cambiantes de azul, ou debruado a terras, preciosas porque impolutas; até mesmo ao paladar, que o ar aqui sabe ao que cheira, temperado a sal.
Estou velho, essa é que é essa. O físico lembra-mo todos os dias. Não obstante, sem querer cair no rotineiro chavão do espírito vivaz, atrapado a descompasso em ossos doridos e veias enrijecidas, não quero, de todo, deixar que tal facto tenha em mim mais consequências que o escalar dos objectivos que me fixo para uma dimensão que considere exequível, ainda que exigente, sempre resguardado na opinião de quem das coisas do corpo melhor sabe.
Mas voltemos ao que eu queria mesmo dizer, quando referi a minha condições de pré-geronte: agora, o passado tem a dimensão que antes tinha o futuro... e a frequência. Uns chamam-lhe nostalgia, outros, saudade... eu chamo-lhe uma porra, mas a verdade é que dou por mim, tantas vezes, a recordar, em vez de olhar para diante.. feitas as contas, o caminho para trás já me é seguramente mais longo que para diante...
O mar, esse, é sempre o mesmo: se tiver rochas, pedra, ondas, falésia, azul, espuma, maresia, sal, limos, possivelmente até sereias, tanto se me dá que seja aqui, ou nos Açores, mas aqui faz-me lembrar o puto que corria pelos caminhos de lava, que tinha cascos em vez de solas nos pés, que comia o mar nas lapas cruas que engolia e pendurava no anzol, na esperança que as castanhetas também gostassem do petisco...
Por isso não iria conseguir dizer que não; por isso comprei o bilhete de camioneta para Lagos. O Trilho dos Pescadores esperava-me. Depois de Santiago, percebi que o meu corpo ainda podia, mais do que isso, ainda o queria. Só havia pois uma solução... a mais fácil de todas: ir!
Sentado num autocarro que tinha bem mais assentos vazios que ocupados, o que me permitiu o conforto de uma fila só para mim, vi o Alentejo deslizar pela janela, enquanto esforçava a vista contra o pequeno écran do telemóvel para ler o famoso ensaio de Thoreau "Walking", leitura que me pareceu particularmente adaptada ao momento que agora iniciava e que se estenderia por uma semana, entre Lagos e Aljezur.
O Caminho dos Pescadores, na sua extensão total, entre Lagos e São Torpes, tem 226 km. Por várias razões, decidi fazê-lo em duas partes: Lagos-Aljezur e Aljezur-Sines (penso incluir os poucos quilómetros entre Sines e São Torpes, para assim deixar já toda essa parte da costa percorrida num GR11 - E9 particular que, lentamente, vou completando).
Seriam assim, nesta primeira parte, 113,9 Km que percorreria em 6 dias, o que daria uma média de 19 km por dia. Recuperando a minha experiência do Caminho de Santiago, não me parecia demasiado ambicioso, já que no Caminho tinha feito uma média de 23,6 km/dia, ao longo de 13 dias. Não sabia eu, no entanto o que me esperava, já que na verdade os percursos tem características muito diferentes, que tornam o Caminho dos Pescadores muito mais exigente que o percurso entre o Porto e Santiago.
Subidas, muitas, íngremes e com pisos difíceis e escorregadios, de pedra solta, descidas com iguais características e muitos tramos em areia solta, tornam o percurso bastante mais cansativo. Fiquei contente por a ele não me ter abalançado sem qualquer preparação.
Na soma das seis etapas que fiz, registei um acumulado de desnível positivo de 2,372 m. Em termos médios, o acumulado diário nos seis dias de Caminho dos Pescadores foi de 395 metros, o que compara com a média de 257 que fiz no caminho de Santiago... Para além do mais, a diferença nos pisos e na inclinação das subidas (fácil de perceber nos perfis altimétricos das etapas, com frequentes linhas a bordejar a verticalidade) torna tudo bastante mais desgastante para corpos com quilos a mais, como eu. Felizmente tomei a opção certa no que respeita à época, porque no verão, com temperaturas constantemente bastante acima de 30º C e sem uma única sombra que proteja o caminhante durante muitos quilómetros, imagino que tudo se transforme num enorme desprazer.
Lagos recebeu-me à hora de almoço. Procurei logo instalar-me no alojamento que reservara e, depois de o fazer, passei o resto da tarde a passear pela cidade, já pejada de turistas nas ruas e nas muitas esplanadas de restaurantes e bares que lhe enchem o centro.
Não me sentia um turista e queria que o dia passasse depressa. O meu propósito era outro e ainda faltavam umas hora para o iniciar... recolhi cedo ao alojamento e depois de um jantar com comida feita comprada no supermercado, dediquei-me ao meu habitual registo escrito e gráfico da história do dia no caderno de viagem que me acompanha.
Luz fechada cedo, que amanhã queria, também cedo, começar a caminhada.
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