Rota Vicentina
Não conseguia ficar mais na cama, embora ainda fosse bastante cedo e a segunda-feira ainda se não sentisse em Lagos. Queria começar. Era para isso que tinha vindo e a vontade de sair para a rua sobrepunha-se a tudo, menos à necessidade de quebrar o jejum, para mais com a possibilidade de tomar ali mesmo em casa um café, ainda que instantâneo, acabado de fazer.
Em menos de nada estava já a guardar a chave do quarto no chaveiro ao lado da porta e a sair para as escadas que me levaram à rua por que ansiava.
Respirei fundo, assestei a mochila, que me assegurei estava bem regulada e, sem pompa nem circunstância, dei o passo mais importante: o primeiro.
Ninguém nas ruas que ontem estavam cheias de gente, quando por ali tinha passado. Na praça, frente à entrada do porto, um pequeno grupo de pessoas, com nítido ar de quem se encontrava ainda na noite de domingo (e por ali ainda iria ficar algum tempo), cantava e falava animadamente.
No telemóvel carreguei o trilho do dia no wikilok e lá segui, acompanhado por um sol que começava o caminho do dia, ele também.
Em pouco tempo deixei a parte urbana da cidade para começar a andar por sobre a falésia, frente ao oceano.
Esta seria uma etapa fácil, com um bom pedaço a correr em passadiço de madeira, o que torna as coisas bastantes simples em termos de andamento, mas o sol estava forte e parei por momentos num dos miradouros nos passadiços para me proteger com uma aplicação de protetor solar nos braços, cara pescoço. Fá-lo-ia todos os dias logo no início da tirada e foi com grane contentamento que consegui chegar ao fim da viagem, já em Aljezur, sem outro problema de "escaldão" que a nuca um pouco mais tostada, mas sem que por isso sentisse qualquer desconforto.
Sentia-me imensamente bem. O prazer do caminho juntava-se ao prazer da paisagem, a rocha entrecortada por mar, o azul a morrer no ocre, a brisa que me refrescava a cara, tudo se conjugava para uma excelente jornada de passeio.
De quando em quando cruzava-me com algumas pessoas que, a pé ou de bicicleta, por ali passavam no seu exercício matinal mas mais ninguém seguia de mochila às costas como eu.
O trilho, em geral, faz-se de norte para sul, mas eu decidira fazê-lo ao contrário para me escapar ao incómodo de ter o sol pela frente, para mais refletido sobre a água, como seria certamente o caso...
Ponta da Piedade. primeira paragem a sério do dia para as inevitáveis fotografias, ou por ali não houvesse um farol.
Um pequeno passadiço de madeira corre frente às traseiras do farol, para terminar numa plataforma miradouro. Alguém lá estava, banhado pela luz forte do sol que garantia ainda grandes e marcadas sombras. A oportunidade para uma boa fotografia, que não deixei escapar.
Contornado o cabo, o horizonte deixava ver a costa perfeitamente, sendo até possível ver o casario branco da Luz, lá ao fundo, local de término oficial da primeira (ou de início da última... ) etapa do trilho.
Como o trajeto era fácil e curto, eu, no entanto, não pretendia terminá-lo aí, mas sim o mais à frente que me fosse possível, encurtando assim um dia ao percurso.
A intenção original era terminar a etapa em Salema, já que assim deixaria intocada a etapa classificada como o mais difícil do percurso, que liga esta vila-praia a Sagres. Não obstante, só consegui encontrar alojamento minimamente acessível no Burgau. Por isso decidi que a minha etapa terminaria aí, o que teve como consequência acrescentar mais uma subida forte e 6 km à já longa e difícil etapa até Sagres.
Estávamos em maio e, no entanto, tudo se encontrava ou esgotado ou com preços que tornariam a semana de percurso mais cara que uma semana de férias descansada num lado qualquer. O Trilho dos Pescadores tem obtido muito boa publicidade, ao ponto da CNN e o NYT o colocarem nas listas dos melhores percursos por esse mundo fora. E isto tem reflexos óbvios na procura e, consequentemente, nos preços do alojamento. Agora, quando escrevo, confesso que este problema me preocupa um pouco para a segunda parte do trilho na costa Alentejana, mas a seu tempo logo se verá.
Um primeiro casal passou por mim no sentido contrário, já eu não me encontrava muito longe de iniciar a descida para a Luz, o que fiz após ter parado um pouco no marco geodésico da Atalaia, a marcar o ponto mais elevado do trajeto do dia.
Esta foi uma das ocasiões em que fiquei muito contente por ter escolhido fazer o percurso no sentido inverso ao habitual. De facto, a descida que me levaria à Luz (engraçada formulação esta) é bem mais fácil de fazer no sentido descendente, embora também exija, por vezes, algum cuidado para evitar escorregar nas pedras soltas.
Enquanto descia alegremente os cerca de 110 metros de desnível muito pronunciado, cruzei-me com vários caminhantes que o faziam no sentido ascendente e todos arfavam que nem fole de órgão de igreja, sendo visível nos respetivos semblantes o esforço que a ravina lhes convocava.
Chegado cá abaixo, um grande baldio mostrava-se ainda coberto por algumas flores, com muitas orquídeas já quase todas secas a despontar por entre os cardos e as ervas. "Que pena a época de floração das orquídeas estar já passada," pensei para mim mesmo.
A Luz, a igreja e a memória dos tempos em que a pacata vila não saía da televisão por causa da menina que ali desapareceu. Procurei um café e sentei-me a descansar enquanto saboreava uma boa chávena de café quente, que o dia ia fresco, a tal ponto que aproveitei para vestir o polar, porque, como estava com as costas molhadas de suor, sentia algum desconforto.
Seis quilómetros separavam-me ainda do Burgau e depois de ter também aproveitado para, frente à praia, ter comido a sandes que tinha preparado em casa, lá segui a subir, até reganhar a cota de topo da falésia. o mar de um lado e a terra avermelhada pontuada a verde do outro, uma brisa refrescante, um ar que me purificava a cada golfada que dele inalava... quem podia querer mais?
Uma cotovia fez-me parar um pouco a observá-la, enquanto olhava para mim também. devia estar atarefada a fazer ninho porque me pareceu que carregava palhas no bico.
Um pouco mais à frente, as primeiras paredes de casa e nova descida. O Burgau. Tinha chegado ao destino. consultado o relógio, eram 13 horas. E agora, que fazer? o check-in por estes lados só abre às 16h, o que é manifestamente idiota, mas aconteceu-me por várias vezes...
Telefonei para o alojamento a perguntar se poderia ir lá deixar a mochila, para não ter que ficar carregado com ela desnecessariamente. Confirmada esta possibilidade, dirigi-me ao local de pernoita para deixar a agora desnecessária carga, e regressei ao centro da vila, que é como quem diz, à praia, onde procurei uma esplanada onde gastar tempo.
Mas 3 horas de espera é uma coisa infinita para pacientes da impaciência e, depois de esgotado o líquido no segundo copo de cerveja sem álcool com que aproveitei para me refrescar, abandonei a esplanada onde famílias e turistas, todos barulhentos demais para os meus ouvidos massajados por horas de calmo murmúrio de mar entrecortado por um ocasional, mas distante grito de gaivota, se entretinham a desencaminhar hambúrgueres, batas fritas e saladas de atum, entre copos de gelada sangria.
Uma árvore com copa grande projetava sombra sobre o murete do parque de estacionamento sobre a praia... descalcei as botas e ali me deixei estar a espiar os meus pecados por mais de uma hora até que uma mensagem no telefone me alertou para o facto de que o quarto já estava disponível para o poder ocupar.
Subi a rua até ao minimercado onde aproveitei para comparar jantar e pequeno almoço para o dia seguinte e dirigi-me ao alojamento onde depois de me instalar, dei início à habitual rotina de lavagem do corpo; da roupa e da alma, com uma reconfortante soneca retemperadora.
Um senhor francês, que deveria ter a minha idade, seria a minha companhia de quarto, e após troca das habituais palavras de circunstância, lá se instalou também.
"Pas de problème si tu ronfles... je suis sourd", avisou-me.
Sorri. Estávamos conversados! Por acaso, não creio que hoje em dia seja um problema. No passado sim, quando estava bem mais gordo. Agora não creio que ressone ou, se o fizer, não será de modo a causar grande problema de vizinhança. A experiência dos dias do caminho de Santiago levava-me a esta conclusão.
Não saí mais e passei o resto do dia a descansar porque no dia seguinte queria sair cedo novamente.
Estava um pouco apreensivo: era a etapa mais dura e, como já escrevi, tinha-lhe acrescentado mais uma subida e seis quilómetros...
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