terça-feira, 18 de junho de 2024



 XIII - Iria - Santiago de Compostela

21/Setembro/2023


Talvez por ser a noite que antecedia a última etapa, custou-me sobejamente a adormecer e, pelas 5h30, já estava acordado. Como nada me prendia ali, levantei-me, vesti-me, tomei o pequeno almoço e na esperança de, mais uma vez, me poupar à chuva que caíra durante a  noite, saí para a última tirada que me levaria até ao fim de um percurso longo de 30 anos, embora só fisicamente cumprido nos 13 dias que agora se completavam.

Noite ainda lá fui palmilhando os primeiros passos que me afastavam de Iria, numa etapa que teria o condão de ser quase sempre a subir, embora  com a compensação da passagem por várias áreas de bosque, o que é sempre mais agradável que andar ao longo de estradas, na companhia de trânsito automóvel.

Quase quatro quilómetros volvidos sobre o início da tirada o céu abriu-se para o mundo cá em baixo e lá tive que parar para vestir o impermeável e colocar a capa de proteção na mochila. Não obstante, o caminho por entre árvores ajudou  a que a chuvada não causasse incómodo  maior que a necessidade de limpar as lentes dos óculos de quando em vez.

Escravitude. Uma povoação que se atravessa longitudinalmente, ao longo da estrada, na incessante companhia dos camiões que nela estão sempre a passar, guardava-me a primeira surpresa do dia. Um edifício paralelepipédico, branco, mesmo à borda da estrada, com uma bela fachada e varandas de arte nova... tão inesperado quanto bonito.

Do outro lado da rua, uma grande igreja, Nossa Senhora da Escravidão, com as imagens de dois santos com que várias vezes me cruzei ao longo do caminho: o óbvio Santiago e o nosso Fernando de Bulhões, que o mundo católico venera como Santo António de Lisboa.

Tempo para uma pausa também e para a habitual chávena de café, que confortava, depois do passeio à chuva.

Milladoiro, bem mais à frente, seria a paragem seguinte. Aí cheguei já sem a chuva a fazer-me companhia, muito embora isso fosse coisa que não faltasse nestes últimos quilómetros do caminho. Difícil era, muitas vezes estar minimamente sozinho... a espaços, viam-se verdadeiras filas de caminhantes que, como eu, tinham por meta a cidade da Catedral que, daqui, de Milladoiro, se conseguia pela primeira vez vislumbrar, ainda que à distância ainda de vários quilómetros.

Saborosos, estes, no entanto, porque passados, em grande parte, dentro de um enorme carvalhal que, para além da beleza das árvores, me deu a beleza da sombra, e tão bem que ela sabia, agora que o dia já ia avançado, quente mas húmido, o que é sempre fonte de alguns desconforto.

Este carvalhal era a minha última esperança para me cruzar com uma vaca-loura, Lucanus cervus, coleóptero que nunca tive o prazer de vislumbrar. Embora bem atento, não tive, mais uma vez,  essa sorte e continuo a não poder riscar a linha que carrega o seu nome na minha imaginária mas bem presente lista de coisas para ver.

Por fim "las afueras de la ciudad de Santiago de Compostela"... prédios novos, trânsito e o caminho a percorrer ainda até ao centro, que é como quem diz o fim. Os últimos quilómetros... quanto mais perto chegava, mais a vontade de chegar aumentava, a mochila, que nestes últimos dias já quase nem dava por ela, começava agora a pesar inusitadamente sobre os ombros, os passos sentia-os agora também de maneira diferente, mais pesados.... "desculpe, o Obradoiro é por aqui ou por ali?" perguntei eu num cruzamento já bem dentro do casco histórico da cidade, "Por ali" respondeu-me a simpática senhora, com idade para já ter respondido o mesmo a muitos e muitos outros que, como eu, alguma vez procuraram caminho.

De súbito, a entrada na praça, com a Catedral pela direita e a multidão que por ali sempre está. Gente, gente e mais gente, mas todos mostrando óbvios sinais de manifesta boa-disposição e contentamento por terem atingido a meta a que se tinham abalançado... também eu assim me sentia, mas a entrada na praça., ao contrário das descrições que lera que a vertiam em pirotecnia para a alma e explosões sensoriais de difícil explicação, essa, talvez por estar sozinho, teve para mim um sabor quase de atabalhoada conclusão de passeio, uma notória aura de   anti-climax, um sabor discreto, mas concreto, a "já está!"...e agora? acabou?  já? amanhã não ando mais?

Pedi, tinha que o fazer, a uma das pessoas que por ali se encontrava que me tirasse uma fotografia com o telemóvel (sou assim, mas sou humano....),  olhei a catedral com o respeito e a satisfação de a ter frente aos olhos e sentei-me no chão a escrever uma pequena nota que enviei aos amigos mais chegados, em jeito de epílogo:

E pronto...cheguei! Mais de 300 km, 13 dias, embalado apenas pela música do ar e pelo compasso das botas a irmanarem-se com a terra, a lama, a água, a areia, a relva  as folhas mortas , as folhas vivas,  o asfalto...  Não busco indulgência outra que o prazer solitário da caminhada e de sorver o mundo à minha volta com os olhos bem abertos e, essa, foi-me plenamente concedida. E, com isso, sinto-me feliz...


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 Ao prazer da caminhada, juntei tantas vezes o prazer da comunhão com espaços naturais relativamente intocados...

Igreja de Nossa senhora da Escravidão: Santiago

Sto. António

a bela fachada art noveau de um edifício à beira da estrada






Só para passar em locais como este, tinha valido a pena...

As pessoas dão escala

Mas a verdade é que não fazem falta nenhuma à imagem...


Ao contrário das estátuas, que não costumam ficar mal na fotografia

Se isto não é a Galiza, onde está a Galiza?

Quem viverá por detrás do pequeno postigo com caixa de correio?

Nem sempre a arte está nas mãos de quem faz. Por vezes está apenas nos olhos de quem vê...

... não é verdade?


Um dos últimos indicadores de caminho que vi, num portão que dizia "Ruta Portuguesa" de um lado e "O Chimangas", do outro.

A entrada na cidade...

... e o destino final! (não confundir com o Juízo final, que esse, fica apenas para os leitores 😀)



A caminho do hotel



o bota-fumeiro

e a doçura estrepitosa de uma gaita, que sem ela o caminho seria incompleto!

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